O ex-coordenador da Lava Jato no Paraná Deltan Dallagnol diz que partidos e políticos alvos da operação paulatinamente recuperaram o espaço perdido e que, como resultado, há “uma certa apatia ou mesmo cinismo” no país hoje.
Ao jornal Folha de S.Paulo ele comparou o contato que mantinha com o então juiz Sergio Moro ao relacionamento de advogados com ministros de cortes superiores e negou que tenha havia conluio.
A entrevista foi feita por email, a pedido do procurador.
Fora da Lava Jato desde setembro, o ex-coordenador da operação sofreu outros reveses recentemente.
A defesa do ex-presidente Lula conseguiu acesso em janeiro a mensagens trocadas pelo procurador no aplicativo Telegram, hackeadas em 2019, e tem trazido a público mais conversas da época das investigações. O STF (Supremo Tribunal Federal) confirmou na terça (9) o direito de Lula de manusear os arquivos.
A defesa ainda tenta anular na corte as condenações impostas a ele em Curitiba.
PERGUNTA – Como viu a decisão do STF sobre as mensagens? O sr. considera que há como reverter o abalo na credibilidade sofrido pelas autoridades da Lava Jato com essa exposição?
DELTAN DALLAGNOL – O STF ainda não apreciou a questão de ser um material ilegal, não autenticado e não reconhecido. Há quem veja nele uma base para acusar a Lava Jato de excessos na investigação, o que é um equívoco.
Em direito muito pode ser debatido, mas jamais houve afrontas à lei. Se tivessem ocorrido violações à lei na obtenção de dados fiscais ou de provas no exterior, ou a indevida investigação de pessoas com foro privilegiado, tudo isso seria facilmente comprovável, afinal o histórico de todos os atos probatórios, desde a suspeita inicial até a prova resultante, está nos processos.
Passados dois anos da exposição sensacionalista do material, nada de ilegal foi de fato identificado pelas centenas de advogados porque não houve.
Pesquisa divulgada nesta semana mostrou que 80% da população apoia a Lava Jato, o que demonstra que a sociedade confia na solidez do trabalho. Contudo, não sei como se verá essa questão no futuro porque seu debate está muito poluído por narrativas que têm compromissos com interesses e não com a verdade.
Mas até um nome de votos historicamente a favor da operação, como Cármen Lúcia, se posicionou de maneira crítica agora.
DD – A ministra ressalvou no seu voto que não estava apreciando as questões referentes à legalidade, eficácia probatória ou conteúdo do material. Apenas concedeu acesso à defesa do ex-presidente em atenção ao princípio da ampla defesa, o que é algo muito mais limitado.
Não é necessário, ao menos, fazer autocrítica em relação à proximidade com o juiz? Se o juiz mantivesse contatos com as defesas da mesma maneira, o sr. também não consideraria problemático?
Advogados têm contatos com juízes diariamente em todo o Brasil, e isso é legal. Figurões vão ao STF de bermuda. Não temos um décimo do acesso a certos ministros das cortes superiores que muitos advogados ou mesmo réus têm.
Com o juiz da Lava Jato, é evidente que tínhamos um contato mais frequente. Quando um advogado tem cinco casos criminais sob a responsabilidade do juiz, ele marca uma reunião. Quando você tem mil casos, trocar mensagens é mais eficiente.
Ninguém alega que exista prova da inocência de alguém nas mensagens, mas que o juiz teria se excedido na proatividade. Ora, no sistema brasileiro, o juiz pode produzir provas e buscar os valores da Justiça como verdade e agilidade. Fazer isso não é favorecer o Ministério Púbico, e sim a Justiça. Se o juiz fala para o advogado ou réu que, se quer provar seu álibi, precisa trazer provas do que diz, não há nada de errado nisso.
A tese do comando pelo ex-juiz ou de conluio com o Ministério Público é desmontada pelo fato de que o ex-juiz absolveu mais de 20% dos réus e indeferiu centenas de pedidos da força-tarefa.
No caso envolvendo o ex-presidente Lula, mais de uma dezena de pedidos do Ministério Público foram indeferidos e mais de 60 da defesa foram deferidos. O caso foi rejulgado completamente e confirmado por três julgadores independentes e depois pelo STJ [Superior Tribunal de Justiça].
Não há no material, que não é reconhecido por nós por várias razões que vão de indicativos de sua edição e deturpação até a impossibilidade de lembrar e resgatar o contexto de milhares de mensagens trocadas há anos, qualquer predefinição de resultados, ações contrárias a fatos e provas, supressão de provas de inocência, fraudes processuais ou prática de crimes.
Sempre pautamos nosso trabalho pela lei. Sempre há, contudo, discordâncias legítimas em matéria de direito e tem também, claro, muita gente que quer ver erros e anular condenações.
A força-tarefa errou ao intervir em assuntos que não eram de sua atribuição, como a eleição no Senado, a apresentação de propostas legislativas ou a gestão de recursos pagos pela Petrobras? Também não avalia que houve exposição em demasia de autoridades da operação? Em que medida esses fatores colaboraram para o enfraquecimento da investigação?
DD – O enfraquecimento da operação decorre principalmente da proibição da prisão após o julgamento da segunda instância, de amarras legislativas colocadas na colaboração premiada e em prisões, da transferência para a Justiça Eleitoral dos casos de corrupção política, da cisão e redistribuição pelo Brasil de casos com íntima relação que estavam concentrados em Curitiba e do desmonte das forças-tarefas.
Há, ainda, uma reação política às investigações. Se o sistema de Justiça criminal propicia a impunidade, é legítimo que seus atores, que conhecem suas amarras, proponham e defendam mudanças. As iniciativas que mencionou tinham por objetivo justamente aumentar a integridade na política, mudar leis no Congresso e fortalecer a atuação da sociedade civil em matéria anticorrupção.
O sr. não participa mais da equipe, mas a Procuradoria já trabalha com a hipótese de anulação de muitos dos atos e processos da operação devido ao caso Telegram? Como seria esse cenário?
DD – Esse cenário não é trabalhado porque não vai se concretizar.
Tenho absoluta segurança no trabalho feito, sempre lastreado em fatos e provas colhidos dentro da lei. Embora a interpretação do direito sempre possa ser debatida, aplicamos a lei de modo coerente nos diferentes casos em que atuamos e sempre defendemos e respeitamos padrões internacionais de proteção a direitos fundamentais.
A título de exemplo, criticou-se a troca de mensagens com autoridades estrangeiras em matéria de cooperação internacional. Contudo, esqueceram de dizer que isso é legal e recomendado por manuais de organismos nacionais e internacionais. Conversar sobre provas que estão sendo remetidas pelos canais oficiais é não só correto como recomendável. Porém a sentença do caso tríplex parece seriamente ameaçada.
Ao menos dois ministros já sinalizaram que votarão por considerar que o juiz foi parcial no processo. Isso tende a gerar um efeito cascata.
DD – Em entrevista recente, um desses ministros sinalizou que não seria usado o material dos hackers no julgamento.
É difícil prever o resultado do julgamento, mas, se for reconhecida a suspeição, isso provavelmente ocorrerá com base na discussão de decisões específicas proferidas pelo ex-juiz federal ao longo das investigações e processos envolvendo o ex-presidente. Nesse caso seria uma decisão com efeitos apenas nesse caso em particular.A gestão de Augusto Aras certamente ficará marcada pela iniciativa de mudar a dinâmica dos trabalhos de investigação da Lava Jato.
Como avalia o trabalho do procurador-geral até o momento?
DD – O procurador-geral tem atribuições relevantes em diferentes áreas em que não trabalho e deve exercer sua função com absoluta independência em relação aos demais Poderes.
Na área anticorrupção, entendo que as forças-tarefas da Lava Jato, agora Gaecos, precisariam ter uma estrutura muito maior do que têm, o que é uma questão de priorização. O modelo de trabalho anticorrupção precisa ainda assegurar a plena independência dos procuradores.Quase não houve comoção com o fim simbólico da força-tarefa.
A que atribui essa falta de mobilização?
Houve um enfraquecimento progressivo do combate à corrupção, o que diminuiu os resultados e a visibilidade do trabalho.
Além disso, a pauta anticorrupção cedeu lugar para questões mais urgentes, como a pandemia e seus efeitos sobre a saúde pública e a economia.
Não houve mudanças sistêmicas e estruturais necessárias para fortalecer a integridade no país e, paulatinamente, agentes e partidos políticos envolvidos com a corrupção retomaram espaços de poder.
Como resultado, há uma certa apatia ou mesmo cinismo, que não nos levarão a lugar algum que seja bom. É preciso sermos realistas, mas mantermos a esperança e o bom combate.
O apoio de 80% da sociedade à Lava Jato mostra que existe uma demanda clara por mais justiça e integridade, que deve ser canalizada de algum modo para transformação. Em muitos lugares, a grande corrupção reduziu como fruto de um amadurecimento geracional e civilizatório. É um trabalho permanente.
Quais perspectivas de trabalho há para o MPF diante dessa nova realidade e quais as pendências da operação?
DD – Quando saí da força-tarefa, ainda havia muito trabalho por fazer, muitos casos envolvendo corrupção multimilionária.
Embora os acordos de colaboração premida tenham se reduzido drasticamente desde a decisão que proibiu a prisão em segunda instância, ainda havia a perspectiva de acordos com empresas que recuperariam centenas de milhões de reais.
Contudo, são investigações e negociações complexas e, para serem feitas, é necessário suporte da administração em termos de procuradores com dedicação exclusiva e assessores. Na falta disso, é difícil falar em perspectivas. Só quem está hoje na equipe tem condições de dizer o que poderá ou não ser feito.
O presidente Jair Bolsonaro disse em outubro: “Acabei com a Lava Jato porque não tem mais corrupção no governo”. Como o sr. e colegas receberam essa declaração? Qual a avaliação sobre o desempenho de Bolsonaro em ações contra a corrupção?
DD – Se não houver mudanças sistêmicas na política e na Justiça, reduzindo o apelo do dinheiro nas campanhas, a impunidade e a ineficiência do foro privilegiado, a grande corrupção política continuará aí, independentemente do presidente ou partido da vez.
A intensidade dessa corrupção poderá variar, assim como a prioridade dada a seu combate, mas continuará a ser uma realidade. As mudanças sistêmicas dependem da atuação dos três Poderes. Enquanto não ocorrem, a corrupção continua e com toda força. Pesquisa recente mostrou que a maior parte da população credita o fim da Lava Jato à reação política. Isso é um sinal de que a sociedade espera mais contra a corrupção.
Diferentes entidades e nomes como ex-procuradores-gerais e ex-ministros do STF dizem que a democracia está em risco no país hoje com a incitação a atos antidemocráticos e declarações pondo em dúvida a lisura das eleições. O sr. concorda com esse posicionamento?
DD – Não há qualquer evidência da falta de lisura das eleições. As manifestações autoritárias preocupam, mas acredito na força da nossa democracia, regime que tem o apoio da grande maioria da população, segundo pesquisas.
Um dos principais objetivos do combate à corrupção, aliás, é o fortalecimento do Estado de Direito e da democracia, evitando que propinas bilionárias dobrem a lei e influenciem eleições. Quem rouba mais tem mais dinheiro e consequentemente maiores chances de se reeleger.
Como tem sido a sua atuação no MPF fora da Lava Jato? O sr. admite a hipótese de disputar eleição para cargos públicos ou a descarta?
DD – A Lava Jato ocupava a maior parte dos meus dias, inclusive fins de semana. Desde minha saída para dar atenção à saúde de minha filha mais nova, pude fazer um curso no Mind Institute sobre essa questão e participar ativamente do tratamento.
Então, eu foquei nisso e no trabalho ordinário. Atuo ainda no combate à corrupção, pois acredito que há muito a fazer para melhorarmos a situação no Brasil. Não tenho hoje planos de candidatura, mas sim de contribuir como procurador e como cidadão para o fortalecimento da integridade e da cidadania.
Deltan Dallagnol, 41 É procurador da República desde 2003. Graduado em direito pela Universidade Federal do Paraná, tem mestrado na Universidade Harvard (EUA). Chefiou a força-tarefa de Curitiba de abril de 2014 até setembro de 2020.