Quando tinha 15 anos de idade, o psicólogo Cauê Pinheiro foi diagnosticado com escoliose e Síndrome da Dor Glútea profunda. Sentindo dores por muitos anos, ele passou por diversos tratamentos até que, em 2018, foi receitado por um médico o tratamento com canabidiol, um conjunto de substâncias extraídas do óleo da cannabis. Com o uso, viu uma melhora nos sintomas e, em 2020, conseguiu a primeira liberação da Justiça da Paraíba para o cultivo da planta em casa.
No início de novembro, os advogados Ítalo Coelho Alencar, Ana Raquel Xavier de Barros, Marlon Tavares Mineiro, Adriano Ferreira Silva e Martinho Faustino Xavier Júnior conseguiram um salvo conduto para o plantio de cannabis e produção do medicamento à base da planta, através de habeas corpus impetrado na 16° Vara da Justiça Federal na Paraíba.
Cauê ganhou a liberação, autorizando o cultivo de maconha para a produção de canabidiol em casa. A vitória veio depois de alguns anos sendo assistido pela Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace), instituição com sede na Paraíba e que foi a primeira do Brasil liberada a produzir cannabis medicinal. Essa conquista aconteceu com o apoio jurídico da Liga Paraibana em Defesa da Cannabis Medicinal.
Diagnóstico
Do diagnóstico até o consumo do óleo de cannabis, as dores se intensificaram. Aos 20 anos, Cauê começou a fazer uso constante de analgésicos e anti-inflamatórios, porém, sem obter um alívio satisfatório. Em 2015, após sofrer um acidente de bicicleta, o quadro se agravou e, após novos exames, ele descobriu que também era portador de condropatia patelar e lombalgia.
De 2016 a 2017, o psicólogo conheceu a Abrace, onde trabalhou por um ano. Foi ali que conheceu a associação e também aprendeu sobre o cultivo da maconha. Entretanto, as dores ainda persistiam e os tratamentos não tinham tanta eficácia, principalmente pelos efeitos colaterais causados.
“A situação gerou uma instabilidade no canto póstero lateral. Fiz uso de medicamentos cada vez mais fortes, obtendo alívio satisfatório com o uso de codeína (remédio derivado do ópio), mas passei a ter desconforto intestinal e dores abdominais, o que me fez suspender o uso e buscar a alternativa do uso medicinal da maconha. Desde então, sou acompanhado pelo médico Gustavo Vieira Dias”, escreveu.
Foi com Gustavo que o psicólogo passou a usar o óleo da cannabis, receitado pelo médico em 2018. A dosagem do canabidiol é avaliada pela patologia e o tratamento é acompanhado por um profissional, que deve orientar o paciente em relação às dosagens e ao horário.
No mesmo ano, Cauê foi cadastrado na Abrace como paciente. Assim, ele pegava o óleo gratuitamente através da política social da associação – que é a única com autorização judicial para produzir extratos de cannabis no Brasil.
“Felizmente não sofri nenhum preconceito. Desde o início minha família me apoiou nas decisões tomadas e acompanha o meu tratamento, vendo os grandes benefícios que o uso do óleo tem me dado”, disse o psicólogo.
O cultivo
Na casa do psicólogo, as plantas ficam em local apropriado e com todo o controle de qualidade. A produção do óleo também é feita na residência de Cauê. Os estudos realizados ao longo dos anos, assim como a experiência de ter sido cultivador na Abrace de 2016 a 2017, proporcionaram o conhecimento suficiente para a realização correta dos procedimentos.
As flores das plantas cultivadas são usadas na extração das substâncias e na produção do óleo, usado como medicamento. Elas são colocadas em óleo, geralmente de azeite ou de coco, a mistura é aquecida e em seguida coada. Assim, o óleo é envasado em recipientes esterilizados, que ficam armazenados em local seguro.
Associado da Liga Canábica da Paraíba consegue habeas corpus para cultivar maconha em casa; plantas ficam em local adequado para o cultivo seguro — Foto: Cauê Pinheiro/Arquivo pessoal
Todas as etapas são registradas e controladas, desde o número de sementes, passando pelo cuidado com as plantas, a colheita e a quantidade do que é produzido. O tratamento é acompanhado pelo médico, que regula as dosagens visando o alívio das dores. O óleo é ingerido e possui genéticas específicas e adequadas a cada tipo de tratamento.
Liberação na Justiça
O apoio jurídico para que Cauê pudesse conseguir o habeas corpus veio da Liga Canábica da Paraíba. Coordenadora da sede no estado, Sheila Geriz conseguiu liberação no mesmo dia de Cauê, também com ajuda da Liga. Ela explica que a assistência jurídica e o processo judicial se dão de forma simples e rápida.
“O paciente nos procura informando que está cultivando ou quer cultivar para produzir seu próprio remédio. Nós orientamos quanto à documentação necessária para ingressar com uma ação penal pedindo um habeas corpus preventivo, que garante ao paciente um Salvo Conduto, que é uma proteção judicial para que o paciente não seja preso, nem tenha seu cultivo danificado pela polícia”, disse.
Com a documentação encaminhada, advogados associados da Liga ingressam com as ações. Conforme a coordenadora, deve-se demonstrar ao juiz que a cannabis foi eficaz no tratamento da doença e que o paciente tem condições de fazer o cultivo e a extração dos derivados necessários para seu tratamento. No Brasil, já são quase 200 paciente com salvos condutos individuais para cultivo.
No processo da coordenadora, o habeas corpus foi concedido à ela, que trata uma artrite reumatóide; seu filho, Pedro, que tem autismo e epilepsia; e seu ex-marido, que como pai participa do tratamento de Pedro.
“Comprovamos através de laudos médicos a minha melhora e a melhora do meu filho; comprovamos o alto preço dos produtos importados e a impossibilidade de manter o tratamento; comprovamos as condições para produzir os extratos em casa e ingressamos com a ação judicial. Em duas semanas tivemos a resposta positiva do judiciário”, explica Sheila.
Além da assistência jurídica, a Liga Canábica da Paraíba oferece assistência médica, a partir de médicos apoiadores que fazem o acompanhamento terapêutico da cannabis para pacientes assistidos. Acolhimento e orientação aos pacientes em uso, ou em processo de fazer o uso da terapêutica canábica, também são feitos pela associação.
Além disso, a Liga Canábica da Paraíba tem parcerias com universidades e institutos de pesquisa para fomentar a realização de estudos e disseminação do conhecimento sobre o uso terapêutico da cannabis.
A coordenadora explica que é essencial a criação de uma cultura de acolhimento aos pacientes em tratamento e a construção de políticas de acesso à terapêutica canábica. Por isso, atividades culturais com o intuito de promover a quebra do preconceito, realização de cursos e intervenções junto aos entes públicos também são ações feitas pela Liga.
Mudança na qualidade de vida
O plantio possibilitou a Cauê uma autonomia de produção, com um custo muito baixo em relação aos benefícios. Agora, ele consegue levar a vida de forma mais leve e as obrigações do dia a dia já não são mais comprometidas, seja pelas dores ou por questões psicológicas.
“Com o uso do óleo tenho as dores amenizadas, o que influencia não só no corpo, mas nos sintomas depressivos e na ansiedade que tenho e ficam muito intensificados na crise. Consigo levar minha vida de forma melhor”, afirmou.
Colaboradores da Abrace, em 2017, na Paraíba. Na foto aparecem Cauê, Achilles, atual responsável pelo cultivo, Cassiano e Juliano Nishida, que na época também trabalhavam na associação. — Foto: Cauê Pinheiro/Arquivo pessoal
Sheila Geriz explica que a maioria dos pacientes não usa canabidiol, apenas extratos da cannabis. Canabidiol é apenas uma das substâncias da maconha, existindo variedades que são mais ricas neste composto e outras mais ricas em THC, a principal substância psicoativa da planta, que também é medicinal.
“Isso sem falar nos demais compostos da planta com alto poder terapêutico, como os demais canabinóides, os terpenos, os flavonóides etc”, destaca.
No seu caso, ela usa os extratos de toda a planta e agora tanto ela como o filho não precisam mais fazer uso de medicamentos alopáticos, conhecidos por fazer efeitos contrários aos sintomas causados por uma doença, como antialérgicos e anti-inflamatórios.
Cauê e Sheila são os únicos moradores da Paraíba que conseguiram a liberação, mas juntos esperam que o quadro mude.
“Somos os primeiros daqui. Espero que venham muitos depois”, disse a coordenadora.