Se Jair Bolsonaro (PL) confirmar seu plano de não passar a faixa para Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na cerimônia de posse no dia 1º de janeiro, ele fará com isso seu último ataque à democracia antes de deixar definitivamente o cargo de presidente da República.
Mas, ao contrário de outros momentos de seu mandato, quando suas declarações golpistas vinham carregadas de ameaças concretas, dessa vez o retrocesso seria no campo simbólico -o que não o torna desprezível.
É que nada obriga Bolsonaro a entregar a faixa a Lula. A presença de um presidente na posse de seu sucessor é irrelevante do ponto de vista jurídico; tudo que a Constituição determina (artigo 78) é que o eleito e seu vice participem de sessão solene no Congresso para jurar cumprir as leis.
Ainda assim, segundo a antropóloga Lilia Schwarcz, não se deve desprezar a importância do ritual, que representa um momento de união acima das discordâncias partidárias.
“Entregar a faixa significa que o poder está sendo transmitido, que as diferenças políticas estão sendo superadas em nome da democracia, bem como os atritos e as divergências nos planos de governo que possam ter ficado mais evidentes durante a campanha”, diz Schwarcz.
Não por acaso a cerimônia chamou tanta atenção em 1º de janeiro de 2003, quando Fernando Henrique Cardoso (PSDB) vestiu o adereço em Lula. O gesto indicava a alternância pacífica de poder entre dois adversários políticos eleitos pelo voto direto. Era sinal de maturidade democrática.
Para Schwarcz, que é professora da USP, repetir aquela imagem seria importante neste momento em que o país se encontra dividido. “Significaria uma aposta no futuro e na lógica virtuosa da política, que sempre implicou a formação de consensos, não a manutenção de polaridades.”
Bolsonaro planeja deixar o país até a próxima sexta-feira (30) para passar a virada de ano em Orlando, nos EUA, e, com isso, não participar da cerimônia de posse de Lula nem passar a faixa para ele.
De acordo com o cientista político Fernando Limongi, professor da Escola de Economia de São Paulo da FGV, a recusa em participar desse momento “é sinal de despreparo, de falta de capacidade para representar a nação”.
“Passar a faixa é ter a continuidade e a unidade do país como referências. Em outras palavras, deixar de passar a faixa é um ato de falta de patriotismo.”
Pensada como símbolo do Poder Executivo, a faixa surgiu por ordem do presidente Hermes da Fonseca em 21 de dezembro de 1910. É feita de seda, com as cores nacionais; tem 15 centímetros de largura, traz o escudo da República bordado a ouro e deve ser usada a tiracolo, da direita para a esquerda.
Pelo decreto de criação, caberia ao presidente do Congresso Nacional ou do Supremo Tribunal Federal entregar o distintivo a cada novo chefe do Poder Executivo, mas a prática foi interrompida pouco mais de 20 anos depois.
Segundo a historiadora Isabel Lustosa, autora do livro “Histórias de Presidentes – A República no Catete”, um mordomo do palácio presidencial escondeu a faixa para impedir que Getúlio Vargas a usasse.
Chamado Albino, ele trabalhava no Catete desde a época de Nilo Peçanha, antecessor de Hermes da Fonseca. Depois da Revolução de 1930, teria ouvido de Washington Luís (presidente de 1926 a 1930) um pedido para que só entregasse a faixa a alguém eleito pelo voto, o que não era o caso de Getúlio.
Em 1933, porém, comovido com um acidente sofrido por Getúlio, o mordomo enfim lhe deu o distintivo, dizendo que precisava daquilo para ser presidente de verdade.
Na conturbada história do Brasil, diversos presidentes eleitos não tiveram a oportunidade de passar a faixa para o sucessor, seja porque foram depostos, seja porque sofreram impeachment.
Mas o papelão mais lembrado ocorreu em 1985, quando João Baptista Figueiredo, último presidente da ditadura militar, recusou-se a participar da cerimônia de José Sarney. Sem querer, seu desrespeito reforçou o fim de um ciclo e o início de uma nova era.
Caso Bolsonaro imite Figueiredo, o sinal será outro, diz a antropóloga Lia Zanotta Machado, professora emérita da UnB.
“Ele estará manifestando seu inconformismo com a derrota e sua vontade de fazer oposição. Simbolizará mais do que isso: politicamente, estará demonstrando seu desrespeito, mais uma vez, à democracia.”
Para Isabel Lustosa, há também um significado para o público bolsonarista: trata-se de mostrar que ele não liga para os rituais, porque seriam bobagens ou hipocrisias.
“É o tempo da grosseria, e o Trump está aí como bom modelo”, diz Lustosa. “São regras da vida em sociedade [o que eles rejeitam], tal como dizer bom dia, agradecer, pedir licença.”
“A liturgia do cargo”, diz Lustosa, “[envolve] práticas que estabelecem determinados limites e funcionam como uma barreira civilizatória, digamos assim. Ao romper com elas, a turma do Bolsonaro não age de forma inocente. Seu objetivo é negar a importância e a seriedade das instituições.”
Uma maneira de enfrentar essa possível desfeita seria criar uma nova tradição. Lilia Schwarcz diz que Lula poderia receber a faixa do povo brasileiro, por exemplo.
“Nada impede que ele inove no ritual, recebendo a faixa de negros e negras, indígenas, pessoas de várias regiões do país, pessoas da comunidade LGBTQIA+, crianças e adultos, pessoas até então anônimas”, afirma.