Mantida nas sombras da vida privada, a compulsão alimentar por si só já vem carregada de culpa pelos excessos cometidos. No caso da modelo Yasmin Brunet, 35, participante da atual edição do reality show Big Brother Brasil, o problema ganhou reforço e projeção depois que o cantor Rodriguinho, 45, um dos competidores começou a recriminar em rede nacional o comportamento compulsivo da modelo nas refeições e os efeitos que teriam no corpo da sister.
Os julgamentos sociais, contudo, não contribuem em nada para a melhoria do distúrbio, podendo inclusive causar o agravamento do quadro, uma vez que ele é ligado à ansiedade, angústia e desconforto emocional.
A pessoa com transtorno de compulsão alimentar (TCA), de acordo com especialistas que lidam com o problema, não consegue evitar comer de forma descontrolada e precisa de apoio profissional.
O médico Fábio Salzano, vice-coordenador do Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), destaca que o TCA é diferente da bulimia (que também envolve compulsão alimentar) pela ausência de comportamentos compensatórios pós-ingestão, como induzir ao vômito, usar laxantes ou diuréticos ou fazer exercícios em excesso ou jejum.
“O TCA e outros transtornos acabam sendo influenciados muito pela percepção que a pessoa tem do seu corpo, de como ele é, de como deveria ser. Isso adquire uma importância muito intensa. As pessoas acabam entrando em um ciclo de restrição alimentar e podem chegar a um momento em que essa restrição acaba favorecendo o início de um comportamento compulsivo”, conta Salzano.
Na Classificação Internacional de Doenças (CID), o TCA se enquadra nos transtornos da alimentação como hiperfagia associada a outros distúrbios psicológicos (CID 10 – F50.4). O tratamento é multidisciplinar, envolvendo psicoterapia, apoio de nutricionista e, às vezes, uso de antidepressivos e até de reeducação física e fisioterapia.
Os critérios clínicos para diagnóstico são frequência mínima de uma vez por semana por pelo menos três meses, sensação de falta de controle e comer mais rápido que o normal. Também podem ocorrer ingestão em grandes quantidades sem necessidade de fome, comer sozinho por vergonha da opinião alheia e sentir-se nauseado, deprimido ou culpado depois de refeições exageradas.
Dois episódios de compulsão por semana já é um quadro considerado extremamente grave pelo Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM5), o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais utilizado pelos médicos.
“Claro, também pode existir um perfil genético que favoreça esse tipo de situação e alterações do ponto de vista do humor, de ansiedade, emocional, além dos fatores sócio culturais, [como] a pressão por você ter um corpo bonito. Vemos muito em mídias sociais a cobrança, principalmente das mulheres [por esse padrão]. O que se chama de ‘ter um corpo ideal’, com características absolutamente diferentes do tipo físico do brasileiro e da brasileira habitual”, avalia o médico.
Salzano diz que esse cenário faz com que as pessoas acabem se engajando “em práticas totalmente inadequadas do ponto de vista nutricional, psicológico e médico para adquirir esse corpo”.
No caso de Yasmin, a modelo rebateu as críticas que recebeu no BBB24 pedindo para ser deixada “em paz” e que parassem de falar da compulsão, pois isso seria um de seus gatilhos. Além das piadas sobre o peso da participante, que tem um corpo magro no padrão de passarelas, o programa exibiu cenas de Yasmin procurando aflita por comida e comendo porções exageradas de requeijão que geraram burburinho nas redes sociais.
A psicóloga Claudia Melo, especialista em vícios e terapeuta cognitivo-comportamental atuante no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD), afirma que, durante uma crise, a pessoa pode sentir uma urgência intensa de comer e uma incapacidade de parar, mesmo quando está fisicamente desconfortável.
“Durante os episódios de compulsão alimentar, a pessoa pode comer rapidamente, sem saborear ou apreciar a comida. É importante ressaltar que a compulsão alimentar é um transtorno que requer diagnóstico e tratamento adequados. Se você ou alguém que você conhece está enfrentando esses sintomas, é recomendado buscar ajuda de um profissional de saúde mental, como um psicólogo ou psiquiatra, para avaliação e orientação adequadas”, diz Melo.
As crises, pontua Melo, podem ser causadas por diversos motivos, incluindo uma combinação de fatores físicos, emocionais e ambientais que vão da restrição alimentar, a presença de alimento muito palatáveis (ultraprocessados com muito açúcar, gordura ou sal, por exemplo) até o estresse.
“A compulsão [também] pode estar relacionada a questões emocionais subjacentes, como baixa autoestima, depressão, ansiedade, solidão ou tédio”, pondera a psicóloga.
A nutricionista Cássia Helena Maia, mestranda em alimentação e nutrição na área de obesidade pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), é especializada em comportamento alimentar e lembra que este tipo de transtorno é psiquiátrico e traz “perturbação na forma como o indivíduo se relaciona com a comida”, podendo comprometer a saúde física e o funcionamento psicossocial.
O TCA, segundo a nutricionista, “está mais para uma anormalidade na quantidade de alimento consumida do que para uma fissura por um nutriente específico”, e ocorre tanto em indivíduos de peso normal, como nos de sobrepeso ou obesos.
“É comum iniciar na adolescência e na idade jovem adulta, e é mais prevalente em quem busca tratamento para emagrecer e faz prática de dietas, sendo este um fator que mantém o ciclo da compulsão. Vale ressaltar que a comorbidade psiquiátrica está ligada à gravidade da compulsão alimentar, não ao grau de obesidade”, diz Maia.
Embora haja maior prevalência de compulsão alimentar entre as mulheres, homens também têm o problema. A taxa de remissão (a “cura” do problema) costuma variar de parcial a completa.
Na parte nutricional, o tratamento envolve reconhecer todos os gatilhos para minimizar os efeitos ou permitir que a pessoa lide melhor com eles. “De maneira conjunta com a psicologia, organizar e reestruturar a alimentação, pensando em combinações, número de refeições, volume do prato, porções mais completas e nutritivas e ainda assim, prazerosas”, sugere a nutricionista.
Outra dica é aprender a reconhecer os sinais físicos de fome e da saciedade, bem como a lidar com as frustrações do processo. “Há necessidade de colocar e sustentar limites; conseguir fazer escolhas com mais facilidade. É um tratamento de médio a longo prazo, mas que resulta no indivíduo conseguindo ter mais estrutura, autonomia, organização, respeito consigo próprio, e retirando o alimento desse patamar tão importante, conseguindo olhar para a comida com mais neutralidade e, assim, diminuir seu sofrimento”, reforça Maia.