Escravidão e pedofilia: saiba quem é Douglas Wilson, pastor cancelado da Consciência Cristã

Paraíba Já apurou casos e entrevistou pesquisadores e líderes religiosos sobre polêmicas e possíveis crimes envolvendo o pastor estadunidense

Acusações de misoginia, defesa da escravidão, e facilitar abusos sexuais são algumas das várias polêmicas em que o pastor norte-americano Douglas Wilson tem sido exposto ao longo dos últimos anos. Na noite dessa quarta-feira (17), ele teve a sua participação na Consciência Cristã cancelada pela organização do evento, que acontece no período do Carnaval, em Campina Grande. E quem é Douglas Wilson? O Paraíba Já apurou casos, entrevistou pesquisadores e líderes religiosos sobre polêmicas e possíveis crimes envolvendo o pastor estadunidense.

A participação do controverso líder religioso havia sido divulgada e até mesmo defendida pelo evento, mesmo sob protestos de pessoas do próprio meio evangélico. No entanto, foi preciso uma publicação da mídia nacional o acusando de defender a escravidão para que a vinda de Wilson ao Brasil fosse cancelada.

O artigo, publicado pelo Intercept, aborda falas em que o pastor, apesar de não defender explicitamente o sistema escravocrata, minimiza a forma como a escravidão aconteceu no sul dos Estados Unidos, e até mesmo desencoraja os cristãos na luta contra o racismo. Para ele, era possível que os cristãos tivessem escravos e ainda assim agissem de forma Bíblica, à época.

“Os proprietários de escravos tinham a liberdade de tratar bem seus escravos. Isso obviamente incluiria tratá-los bem da maneira que seus líderes da igreja exigiam. A obediência em meio a um sistema corrupto e caído foi, portanto, possível em 50 d.C. e em 1850 d.C. [..] Defender a subversão pacífica de uma instituição até que esta esteja completamente morta não é a mesma coisa que defender essa instituição (tradução livre)”, diz Douglas Wilson em seu artigo. Confira na íntegra aqui.

No entanto, o Intercept, que vem sendo acusado de perseguir Wilson por motivos políticos e religiosos, não aborda nem mesmo parte das acusações que o pastor vem recebendo de nomes importantes e influentes no meio evangélico.

Paraíba Já apurou outros casos e entrevistou pesquisadores e líderes religiosos sobre polêmicas e possíveis crimes envolvendo o pastor estadunidense. A teóloga, escritora e palestrante da Consciência Cristã durante o período de 2011 a 2017, Norma Braga, realizou uma vasta pesquisa sobre essas acusações nos últimos anos e tem sofrido ameaças e perseguições ao divulgá-las.

Enquanto no Brasil, os líderes religiosos incentivam a leitura dos pensamentos de Wilson, nos Estados Unidos, o pastor já é considerado um nome descartado em Igrejas evangélicas sérias.

“Infelizmente, ele vem sendo publicado no Brasil com regularidade e tem aqui uma legião de fãs. Mas está longe de ser unanimidade entre os cristãos, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, onde há muitos cristãos influentes preocupadíssimos com seu impacto, sobretudo entre os jovens que buscam orientação como futuros maridos e pais”, comentou Norma Braga em entrevista ao Paraíba Já.

O escritor, jornalista e pastor Emílio Garofalo, é um dos principais nomes que irá palestrar na Consciência Cristã de 2024 e se manifestou contra o convite ao norte-americano, alegando que chegou a alertar a organização do evento.

“Alguns me perguntaram se eu havia externado essas preocupações à organização do evento. Sim, havia, muitos meses atrás, e fui mui amavelmente respondido e ouvido, ainda que não tenha havido convergência de opiniões”, disse em um texto publicado originalmente no dia 23 de novembro de 2023, na plataforma Medium. Confira na íntegra aqui.

Ainda durante o texto publicado por Emílio Garofalo, ele ressalta que as críticas feitas contra Wilson vem de todas as linhas, inclusive de conservadores direitistas. O também palestrante da Consciência Cristã teceu diversas críticas ao pastor norte-americano, criticando, principalmente, a sua postura e linguajar.

“Li vários posts em seu blogue, acompanhei muitas vezes suas posturas nas redes sociais, já vi vários de seus vídeos e gosto cada vez menos do que presencio: Linguajar e postura no falar que não condizem com alguém que é chamado a ser padrão dos fieis. […] Em resumo: no que ele produz de bom, tem gente falando sobre a mesma coisa e melhor; no que ele produz de ruim é bem nocivo; e o que tem de sombra sobre ele é tão pesado que colocá-lo de lado é, a meu ver, o ideal enquanto não chego à clareza”, ressalta Emílio Garofalo.

Na análise de Norma, muitos líderes da igreja brasileira tem cometido os mesmos erros dos republicanos nos EUA: recorrer à política de direita para se defender. “Com o tempo, o núcleo da fé se torna político e não cristão, e isso se reflete também no comportamento agressivo que muitos demonstram na internet e fora dela, deixando de lado a mansidão de Cristo”.

Já aqueles que tentam agir de maneira diferente no meio evangélico brasileiro, acabam recebendo críticas de que essas seriam “pautas de esquerda”, e sendo, muitas vezes, excluídos.

“Ao mesmo tempo, há cristãos com voz pública, inclusive conservadores, que enxergam o problema e vêm tentando alertar, mas muitos líderes acabam confundindo esses alertas com ataques diretos e cedem a certo corporativismo, além de não reconhecer um tipo velado de autoritarismo religioso que não se esforça para proteger os membros contra abuso, mas vê a conscientização sobre o abuso como “pauta de esquerda” e “feminismo”. Precisam ler melhor suas Bíblias para entender o quanto nossa fé se levanta contra qualquer tipo de opressão”, diz Norma Braga.

Além de Wilson diminuir a gravidade do problema da escravidão, Norma alerta para uma visão da mulher bastante inferiorizante. No entanto, o mais grave de todas as acusações são os de abuso sexual facilitados e acobertados por ele.

“Há muitas provas disponíveis, inclusive documentos oficiais e trocas de e-mails. A defesa do próprio Wilson é evasiva e não consta que tenha se arrependido de nenhum de seus malfeitos. Junto com outros líderes como o pastor Yago Martins, tenho me esforçado para divulgar e chamar a atenção para os perigos que correm os evangélicos brasileiros quando, em nome de uma ‘guerra cultural’, chamam as evidências de má prática pastoral no ministério de Wilson, de “fofoca”, reproduzem sua misoginia, copiam sua beligerância e sua linguagem ofensiva, distanciando-se do ideal de Jesus para o líder cristão”.

Confira detalhes sobre alguns casos de abuso

Em 2005, Natalie Greenfield foi seduzida aos 13 anos e abusada emocional e sexualmente aos 14 por Jamin Wight, de 23 anos, ambos da Christ Church, onde Douglas Wilson é pastor.

De acordo com a teóloga Norma Braga, na época, os pastores Douglas Wilson e Peter Leithart acompanharam o rapaz e acreditaram em seu arrependimento. “Wilson não negava o crime, mas só chamava o caso de ‘relacionamento’, e repetia, nas entrevistas e em seu blog, que ela era grande para a idade e 20cm mais alta que Wight, o que parece justificar o abuso”.

Ainda segundo a pesquisa realizada pela escritora, Natalie não foi amparada como vítima pela igreja (sequer recebeu “um abraço”, conforme conta). “Wilson chegou a pleitear com o juiz uma pena menor e a retirada do nome de Wight da categoria de “ofensor sexual”, com sucesso, para grande consternação da família da vítima”.

Um segundo caso envolve outro membro da igreja, chamado Steven Sitler. Ele já tinha cometido abuso de crianças, pelo menos desde 2005. “Wilson ficou sabendo mas demorou meses para contar o fato à igreja antes da prisão do criminoso, deixando-a vulnerável ao abuso, e ainda pleiteou com o juiz uma pena menor, assim como havia feito com Wight”.

Mesmo tendo sido diagnosticado como um pedófilo incurável (“fixated pedophile”) pelas autoridades civis, a igreja se opôs ao parecer psicológico oficial e Douglas Wilson chegou a pleitear junto ao juiz que Stiler se casasse. No entanto, Norma explica que a decisão trouxe a condição de que se o casal tivesse filhos, a esposa seria nomeada tutora do próprio marido, sendo responsável por vigiá-lo.

“Após o casamento, tiveram um filho e ela descumpriu seu papel, permitindo por meses o acesso do marido ao bebê. A situação só foi descoberta porque Sitler precisava periodicamente comparecer em delegacia e passar pelo detector de mentiras — ele falhou repetidamente e acabou confessando ter se sentido ‘estimulado’ pelo próprio filho bebê”, explicou a teóloga.

Ela completa ressaltando que mesmo com a forte possibilidade de esse bebê ter sido abusado, quando indagado se faria novamente o casamento, Wilson responde com uma enfática afirmativa.

Norma Braga explica que Wilson não pode ser considerado um abusador sexual, e sim um facilitador (em inglês, enabler), ou seja, a pessoa que tem poder para, com suas atitudes (ou sua inação), favorecer a impunidade e a liberdade para o abusador continuar agindo.

Ainda de acordo com a pesquisa realizada pela teóloga, os relatos envolvendo Wilson são comprovados e documentados; há um relatório de 500 páginas, de autoria de Rachel L. Shubin, com numerosas cópias de documentos oficiais, sobre os dois casos de abuso com que ele lidou como pastor. Confira nesse link.

O que fez a Consciência Cristã

Em nota, assinada por Euder Faber Guedes Ferreira, presidente da VINACC, a organização da Consciência Cristã justificativa que cancelamento aconteceu após “polêmicas levantadas por interpretações de falas do preletor sobre o tema sensível da escravidão no contexto americano, as quais, por solicitação da VINACC, foram prontamente respondidas em carta aberta ao povo brasileiro, onde ele faz o devido esclarecimento”.

A entidade religiosa defendeu Douglas Wilson e em nenhum momento utilizou as acusações contra o pastor como justificativa para o cancelamento. Outro ponto abordado para a decisão, foi temer pela segurança do palestrante.

“Considerando as reações às veiculações de sua presença entre nós – inclusive com incitação a crimes de ódio, e, eventualmente, à escalada de violência física, julgamos por bem, em mansidão e amor cristão, cancelar sua participação, no intuito de garantir a segurança física do Pastor Wilson, dos demais preletores, e das mais de 100 mil pessoas que passarão pelo Encontro entre os dias 8 e 13 de fevereiro próximo”.

Leia nota de esclarecimento da Consciência Cristã na íntegra

Com muita alegria, ao nos aproximarmos de mais uma edição de nosso Encontro para a Consciência Cristã, evento teológico promovido há mais de duas décadas pela VINACC – Visão Nacional para a Consciência Cristã, podemos agradecer a Deus pelos grandes frutos desse ministério que alcança milhares de vidas anualmente.

Sabemos que o Evangelho é o “poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê” (Romanos 1.16), mensagem reiterada ano após ano nesse encontro. Temos consciência de que seguimos em uma realidade pecaminosa, em que as várias vozes e ruídos do mundo se opõem ao doce chamamento do Espírito Santo, e que assim será até que Cristo intervenha direta e definitivamente na história, inaugurando o seu Reino Eterno.

Enquanto aqui vivermos, nós, crentes em Cristo Jesus, andamos não por nossa força, mas sempre sob a influência do Espírito Santo, procurando manifestar o Seu fruto, a saber: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio  róprio (Gálatas 5.16-26).

Compreendendo que Deus comanda todas as coisas e faz tudo cooperar para o bem daqueles que O amam (Romanos 8.28), decidimos cancelar a participação do Pastor Douglas Wilson, da Christ Church (EUA), após polêmicas levantadas por interpretações de falas do preletor sobre o tema sensível da escravidão no contexto americano, as quais, por solicitação da VINACC, foram prontamente respondidas em carta aberta ao povo brasileiro, onde ele faz o devido esclarecimento (link abaixo).

Considerando as reações às veiculações de sua presença entre nós – inclusive com  incitação a crimes de ódio, e, eventualmente, à escalada de violência física, julgamos por bem, em mansidão e amor cristão, cancelar sua participação, no intuito de garantir a segurança física do Pastor Wilson, dos demais preletores, e das mais de 100 mil pessoas que passarão pelo Encontro entre os dias 8 e 13 de fevereiro próximo. Esperamos que a verdade circule livremente em nosso meio, e que os veículos de comunicação deem ao Pastor Wilson o espaço necessário para que possa também falar e dar sua versão sobre os fatos. Esperamos que o Brasil possa seguir sendo um país aberto à fé e ao respeito a todas as manifestações religiosas, incluindo o cristianismo de tradição reformada, tal como o  recebemos das gerações anteriores.

Esclarecemos que tomaremos todas as medidas de segurança para o bom andamento do evento, bem como as providências judiciais cabíveis para responder a eventuais ilícitos cíveis e criminais que tenham ou venham a ocorrer, pelo bem do nosso ministério e da garantia da liberdade religiosa e laicidade colaborativa, tal qual previsto em nossa Constituição.

Ademais, é importante salientar que nenhum dos veículos de comunicação da mídia nacional, que abordaram a presença do Pastor Douglas Wilson no evento da Consciência Cristã, buscaram a VINACC para obter sua versão e resposta aos fatos noticiados. Isso contraria um princípio fundamental do jornalismo, que consiste em ouvir todos os lados, derivado do contraditório e da ampla defesa, fundamentais em uma democracia.

Por fim, a VINACC repudia qualquer violação aos direitos humanos, incluindo todas as formas de escravidão. A organização compreende que cada ser humano é criado à imagem e à semelhança de Deus (Gênesis 1.27), e, portanto, dotado de dignidade humana, que é o vetor de todos os direitos humanos fundamentais.

Campina Grande, 17 de janeiro de 2024.

Euder Faber Guedes Ferreira
Presidente da Visão Nacional para a Consciência Cristã.

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